Conversando com uma pessoa que está começando agora a
medicar-se com Ritalina, comecei a lembrar de como era a Kátia antes de seu
tratamento...
Desde pequena, muitos anos antes de saber que existe o
Transtorno do Déficit de Atenção, ou de imaginar que eu fosse portadora de
algum distúrbio desta natureza, eu era simplesmente uma criança “diferente”. Eu
era muito criativa, sonhadora e amava passar horas pensando, inventando
histórias, desenhando, brincando e lendo. Lembro que quando eu ficava magoada
meu consolo era fechar os olhos (se necessário, também os ouvidos), e “fugir”
para meu mundo perfeito, rodeada de personagens – todos planejados
detalhadamente por mim mesma.
Aprendi a ler com 6 anos, e aos 8 já tinha bastante fluência.
Foi nesta idade que li minha primeira enciclopédia, todos os 10 volumes,
pulando apenas as partes de fórmulas químicas e físicas. Alias cálculo nunca
foi meu forte, e mais tarde eu soube que uma de minhas comorbidades é a
discalculia. Por outro lado, eu me apaixonei por História, Arqueologia,
Antropologia, Arte, Biologia, Palenteologia e Mitologia. Também me embevecia
com as Biografias, principalmente dos cientistas. Ficava fascinada com o fato
de que as maiorias das grandes descobertas científicas surgiram de simples
fatos do cotidiano.
Lembro-me de ter ganhado um porta-joias lindo, todo de
madeira, pintado com flores. Eu guardei nele um filme queimado (aqueles de
fotografia), pincéis, pinças, potinhos e outros cacarecos mais, que compunham
meu “estojo científico”. Mas eu amava bonecas também, claro. Eu brincava de Barbie,
e a minha trabalhava em um museu de arqueologia, feito com barras de sabão
azul, pedras, conchas, estrelas marinhas, pedaços de corais, etc. Lembro também
de ter ficado realizada o dia em que encontrei um esqueleto de rato inteiro,
faltando só o crânio. Eu o guardei em um vidro de café, com todo cuidado. Quem
não gostou nada foi minha mãe, que o jogou fora sem dó nem piedade, alegando
que eu poderia adoecer. Chorei por muitos dias, magoada com a “insensibilidade”
dela.
Um dia eu assisti a um documentário que mostrava arqueólogos
mergulhando no litoral mexicano, para ver cavernas com pinturas rupestres.
Aquilo me encantou, e passei dias sonhando com os arqueólogos do futuro vindo
estudar minha casa. Resolvi facilitar o trabalho deles, e comecei a coletar
plantas, colar em folhas sulfite e anotar todos os dados de cada uma: nome
popular, nome científico, tipo, gênero, espécie, família, etc. Aí eu colocava
esta folha em um plástico e vedava com fita “durex”.
Minha infância foi bem feliz. Na adolescência é que comecei,
de fato, a me sentir diferente dos outros. Quando alguém perguntava sobre ator,
cantor ou filme preferido, eu me dava conta de que não sabia quase nada sobre
estes assuntos. Eu gostava dos cantores que meus pais ouviam, e assisti aos
filmes que passaram em casa ou que me levaram para assistir, mas nunca tinha
parado para pensar em qual me agradava mais e o porquê. Como todo adolescente, eu
queria me enturmar e ser aceita, mas tive dificuldades e comecei a ficar cada
vez mais braba e irritadiça. Talvez você uma forma de dizer: “Vocês não me
querem? Ok, eu não preciso de vocês.” Eu me condoia com os rejeitados, e os
defendia, e por isso aqueles que ninguém queria por perto acabaram se tornando
minha turma. Por um lado isso era legal, mas por outro, a maioria deles não se
interessava pelos meus gostos também, então eu continuava me sentindo só. Me
sentia inadequada, apenas “orbitando” ao redor da sociedade. Sentia que não
havia lugar e função para mim nesta terra. Com o tempo, passei a querer morrer.
Quando eu estava com 20 anos de idade, um primo foi
diagnosticado como portador de TDAH. Meu tio conversou com minha mãe e disse que
via muitos sintomas de TDAH em mim também. Assim, depois de passar por 3
psiquiatras, 2 neurologistas e vários exames, comecei a tomar Ritalina.
Nos primeiros dias me senti mais ansiosa e irritadiça do que
antes, e tremia mais do que um bambu verde. Mas logo meu organismo se
acostumou, e os benefícios começaram a aparecer. Um dos primeiros foi a mudança
de letra (?!?), que era feia e insegura e tornou-se redonda, firme e simétrica.
Comecei a ficar mais tempo focada nas atividades cotidianas, e os períodos de
hiperfoco foram ficando menores. Minha mãe diz que sou uma versão feminina de “Jekill
and Hyde”, tal foi a minha transformação.
De repente, comecei a prestar atenção nas pessoas ao meu
redor. Tudo nelas era fascinante: gesticulação, expressões, tons de voz,
histórias, reações, tudo! Era como se eu estivesse finalmente descobrindo o
mundo. Eu saí de dentro de mim mesma e comecei a observar a sociedade. Então as
músicas se tornaram interessantes, a moda, a arquitetura, as invenções
científicas... Enfim, tudo o que a mente humana produz se tornou objeto de
grande interesse para mim. Em poucos meses descobri o que as outras pessoas
descobrem em anos, e logo escolhi cantores favoritos, logo decidi que filme me agrada
mais, que lugares quero conhecer. Comecei a entender as pessoas, e a conseguir
compartilhar dos gostos delas. Então comecei a querer fazer tudo que nunca
tinha feito: sair para dançar, namorar, sair com amigos. Antes tarde do que
nunca, né?
Até hoje sinto que quase ninguém me conhece e me compreende completamente,
mas isso não dói mais, porque já não me sinto uma alienígena como antes. É como
se meu cérebro pudesse trabalhar em modo “social” (focado em coisas mais “normais”)
quando estou com outras pessoas, ou em modo “eu mesma” (focado nas coisas que
dão prazer só a mim mesma) quando estou sozinha. Com a diferença de que agora,
depois de 10 anos de medicação, consigo dosar o tempo gasto com meus hobbies e
o tempo necessário para cuidar das atividades diárias inerentes à vida de
adulto. E estou indo bem!
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